O que fazer com o que Kafka fez com a gente
Jair Ferreira dos Santos
Tentarei ser breve, não podendo ser claro. Aos quinze anos vi por acaso uma foto do escritor Franz Kafka numa revista literária. Fiquei perplexo com o quanto éramos parecidos. Faltava-me o cabelo repartido ao meio mas não aquela intensidade alucinada no olhar que o tornou famoso, embora em mim nada acrescentasse de particular. Tínhamos as mesmas orelhas de abano, a mesma testa estreita. Seus lábios eram finos como os meus, apenas nossas bocas revelavam tensões diferentes; a dele parecia prestes a murmurar uma palavra, uma senha no ouvido do indecifrável; a minha mal disfarçava o despeito dos que teriam, adiante, problemas com a ambição ou o orgulho ou a coragem. Nossos narizes eram pura modéstia e, o principal, nossos rostos tendiam para um igual padrão retangular com as linhas do queixo amaciadas por ângulos bastante abertos. Por fim éramos ambos altos e ossudos, como vim a constatar, porém eu nadava melhor que ele. Vesti terno e gravata, reparti o cabelo ao meio também e tirei uma foto para documentar nossa semelhança. Ela se mostrou irrefutável como a luz do sol. Li na época, meados dos anos 1970, quase tudo de e sobre Kafka publicado em português ou castelhano. Achei aquele inferno sem nuances tão surpreendente, tão empolgante que o acreditava mais habítável do que Brasília, onde morava. Havia nele uma exigência de heroísmo face à realidade que estimulava as mentes vacilantes em marcha para a melancolia, por exemplo, a arremedarem a estranheza, a encenarem a resistência na dor. À semelhança com o autor de O castelo, juntou-se o fato de que meu pai, então juiz, possuía um abuso de biblioteca e me forçara a ler historietas desde criança. Daí nasceu a inevitável convicção de que eu deveria tornar-me escritor. Eu porém sonhava outro enredo – reencarnar o próprio Kafka. Fui bastante além de comprar cadernos (que se perderiam) onde passei a anotar suas frases cheias de desespero e a exercitar a arte do miniconto. Sucessivas leituras de O processo me permitiram resumi-lo a: a existência é uma denúncia anônima, um complô sem sentido e sem mandantes contra o indivíduo, enquanto os tribunais, com suas manhas, executam a mímica de uma ordem vazia. Por aí eu compreendia aquela solenidade silenciosa em meu pai, ainda que detivesse igualmente a chave do seu ridículo. O resto foi uma febre, com o cabelo repartido ao meio. Se não tinha uma personalidade esfuziante, o garoto retraído mas atento, imprevisível que eu era virou uma sombra. A solidão me fechou num mutismo que levou minha mãe a consultar um psiquiatra. Me dediquei à insônia, perdendo peso. Rifei amigos da Escola Americana, pois não paravam de me desfazer o penteado, e na mesma onda, porque me tratavam como uma criança doente, mandei tios e avós pastarem. Passeava à tarde pela periferia da cidade para dar aos pensamentos um timbre entre o meditativo e o assustador, apropriado para inventar animais sem nome, rituais sem nexo ao simular as histórias do mestre. Vasculhava os crepúsculos, nos quais a beleza corrompe a angústia, para poder respirar. Evidentemente havia o horror ao cotidiano, mas vê-lo sob o ângulo do absurdo, dos ratos descerebrados num labirinto que éramos, me deliciava. “Ser como Kafka” era de algum modo estar com Kafka, a verdade. Privilegio cujo efeito imediato era o prazer de ser superior e desdenhar qualquer superioridade. Hoje suponho que troquei, com vantagem, Cristo por Kafka, porque deixei de ir à missa também. Menos bem-sucedida foi minha conversão de leitor em escritor. Amar os livros de um autor pode conduzir à falácia da alma gêmea. Achamos que o gosto pelas mesmas visões e emoções somente se explica pela simpatia entre sensibilidades muito próximas, isto é, logo logo, entre talentos iguais. Com o tempo, ler é quase escrever... no futuro, e passamos de um a outro mágica, fraudulentamente, como se mudássemos de nome sem perceber. Enfim, enfeitiçados pela obra, ignoramos os meios para realizá-la, e quando chega o futuro nos pomos a pescar com um arado. Minhas pretensões literárias acabaram ao meter-me a escrever a parábola em que uma comunidade kaingangue era convocada, não se sabia por quem, para a tarefa de separar o joio do joio. Esse impasse ilustrava nossa insensatez. Mas eu não dominava o tema, faltava imaginação ao texto, não me ocorria como finalizá-lo. Para alegria de meu pai, que julgou estar sendo um modelo quando eu imitava Kafka mais uma vez, abandonei a literatura para inscrever-me no vestibular de direito. Os anos de faculdade, no entanto, e Leticia, a garota generosa mas fútil com quem me casei, tiveram sensível influência sobre mim, gerando uma interminável dekafkanization of myself, como ela a batizou. Recuperei a cor, o olfato, que desaparecia durante meses; o sexo e o tédio aumentaram-me a massa muscular. Sem chegar a aprender a dançar, lia romances recentes, assistia ao futebol na televisão. Um terapeuta associou mantras aos antidepressivos para combater meu negativismo. O diabo não apostaria tanto, mas funcionou: nos gestos, na voz havia uma nova energia, ritmo, e uma vivacidade natural se impôs ao meu corpo; por um ardil qualquer, meu desprezo pelas coisas se reduziu a uma canhestra ironia. Viagens ao exterior patrocinadas por meu pai incluíram semestres em Coimbra e New Haven estudando direito público. Enxovalhei essa preparação ao concorrer à promotoria no Paraná; aprovado, designaram-me para a longínqua Cruzeiro do Oeste. Buraco onde baleei um homem. Embora não o lesse mais, Kafka se insinuou no episódio. Entre os meus primeiros processos na comarca estava o que terminou com a condenação de um baronete da soja que estuprara uma menina de treze anos. Trabalhei para tascar no cavalheiro oito verões atrás das grades, a pena máxima. Saíu por seis, resultado invejável, embora seus recursos aos tribunais superiores tenham sido derrubados pelo dinheiro de inimigos políticos. Dias depois da condenação, veio ao meu gabinete no fórum um polaco troncudo metido num blusão de couro, botas, chapéu à texana. Deixei-o meia hora amaciando a caviúna da cadeira na sala de espera enquanto folheava, pensando no que teria pela frente, uma edição antiga de O processo, que uma colega havia me devolvido. Pedi à secretária para mandá-lo entrar; ele veio direto à escrivaninha, apoiou-se na borda com as duas mãos e me disse, no tom da valentia com fuga planejada: “Quem acha que meu pai merece cadeia não merece viver. Acabar com um sujeito é mixaria, o bom mesmo é ele saber por que vai sangrar.” Minha falsa frieza não o impressionou em absoluto, mas sou um tanto estrábico e ele pareceu perturbar-se com isso, como se não pudesse definir um ponto em minha testa onde atirar. Ao afastar-se para sacar a arma, joguei O processo no seu rosto, ele se debateu com as folhas que se soltaram, seu chapéu caíu, e foi o tempo de eu pegar o 22 engatilhado sobre a perna para atingi-lo, de lado, no seu pescoço de javali. Ele também me acertou, embaixo da clavícula esquerda. Não foi quase matar o sujeito – o 22, como se diz, é revólver de atirar em amigo – mas tomar um tiro que fez a diferença; o incidente iria me curar da kafkose por inteiro. O impacto, a surpresa, a dor, o sangue, tudo é choque e trânsito pelo irreal, o inacreditável que seria morrer, se posso falar desse modo. Passado o alvoroço, o hospital, no entanto, você sente uma espécie de conforto, de volúpia morna pela autoridade que começa a se expandir em quem pôs um laço no medo. Você é invulnerável agora, manda e domina sem saber o quê. Nunca registrei algo equivalente em Kafka. Nos mudamos eu e Letícia e Marcelo, nosso primeiro filho, para Curitiba. A cidade era organizada, bonita e mortiça, um canteiro de flores parafinadas; queríamos uma vida tranquila e a tivemos. Sempre achei a ambição cansativa. A eficiência me bastava, não exigia sequer dedicação. Caminhadas pelos bosques de pinheiros me ensinavam a pensar e a respirar sem atropelo. Quando nosso segundo filho nasceu, pude ver aquela nova autoridade em ação. Complicações no parto haviam danificado seu cérebro, os médicos, falando sem me encarar, previam para a criança uma sobrevivência bastante limitada física e mentalmente. Me vi obrigado a escolher entre desligar ou não os aparelhos que o mantinham vivo. Bastaram-me algumas horas num bosque para decidir. Calcado no ritual dos processos, procurei formular perguntas fortemente contrárias à minha posição e selecionar as piores entre elas, tal como: “Eu trocaria a minha vida pela do bebê, se isso o salvasse da anormalidade?” Eu sabia que não. A maioria das pessoas também não trocaria. Ora, essa hipótese não existe, mas sua ausência produz o imenso alívio de não se ter de enfrentá-la e nos libera para atitudes menos penosas, covardes ou não, ao gosto de cada um: eliminar o bebê ou ser infeliz com ele. Mandei desligar os aparelhos, os médicos montariam uma versão cristã da história para Letícia. No táxi que tomei para o cemitério, com o pequeno caixão sobre os joelhos (outra violação da lei), vi meu rosto um instante no retrovisor; branco feito um osso, estava deformado pela repugnância. Vinha-me de tudo à cabeça, mas enquanto cortávamos um descampado lembrei-me do conto “Na colônia penal”. Ali Kafka descreve certa máquina medonha projetada para aplicar a pena aos condenados, pena que consistia em escrever com agulhas em seus corpos a sentença que haviam recebido. Pensei no quanto minha escolha ia além disso, se não concentrava em minha pele o criminoso, o tribunal, o condenado, a sentença e a máquina de inscrevê-la em meu corpo. O castigo ultrapassava o crime em perversão. Ninguém o suportaria por muito tempo. Eu estava enganado. A culpa, o desgosto pela mentira a Letícia estavam ali, mas não me torturaram. Em curto prazo eu como que percorrera um gargalo e saía do outro lado limpo, renovado, mais veloz, favorecido quem sabe pela vitória do esquecimento sobre a absolvição. Desfecho para o qual Kafka seria estupendamente supérfluo. Quando Letícia se recuperou e eu ingressei na carreira de procurador da república, lotado em Porto Alegre, fizemos uma viagem pela Europa. Esqueci por completo que existia uma cidade chamada Praga, que um dia quis visitá-la para ir ao cemitério judeu fotografar o túmulo do tísico Franz. Ao regressar, o sorteio de um consórcio me agraciou com um Corola que só faltava falar. Deixei o carro para Leticia e na sequência vi despertar em mim, não imagino por que vias, uma paixão inusitada. Dei para jogar cartas, dados, roleta, bingo, caça-níqueis em clubes clandestinos, e pelo menos uma vez por mês ia a Punta del Este. Sonhava com estar jogando em Las Vegas, em Monte Carlo, embalado pela curiosidade sobre aonde ia bater aquilo, sem arriscar grandes somas. Mas em Punta conheci um ex-banqueiro uruguaio, doze anos de prisão, feio como um gnomo albino, viciado em bacará. Ganhando ou perdendo, repetia sempre: “a vida é estúpida e exata.” Não era a vida, era o jogo, e entendi o que eu fazia naqueles microplanetas à parte, nem justos nem injustos, onde reinava o acaso, os cassinos: eles me descansavam da Lei, dos Códigos, dos Tribunais, pelos quais uma fantasia de juventude havia se degradado em pura indiferença. Como ganhava mais do que perdia, o jogo me ajudou a reunir dinheiro suficiente para voltar a Brasília e comprar uma casa vizinha à de meu pai. Os procuradores estavam em moda, mas mantive o perfil baixo, para trabalhar no piloto automático. Tive a lucidez de parar com o jogo enquanto Letícia, vendo meu apego à paternidade no zero, desistia de um terceiro filho. Bem, o destino se diverte omitindo a cena e o papel em que vamos figurar na nossa trama. Meu pai se revelou um exagerado bebedor de uísque desde que minha mãe o deixou por um bancário mais jovem. Conversávamos na varanda um domingo de manhã, quando observei que suas olheiras, levemente arroxeadas pela ressaca, marcavam seu rosto descarnado para lhe dar uma ligeira, minutos depois uma escandalosa semelhança com Franz Kafka, o judeu maduro chupado pela tuberculose. Risos fora de lugar me ajudaram a contornar o sobressalto. À tarde, no escritório de casa, remexi em álbuns, livros e pastas que no passado eu etiquetara kafkianamente de “Espólio”, e a observação se confirmou com novos dados. O doutor Ramos se parecia com o Kafka do último retrato, de 1924, onde se notam severidade e pureza no desalento de quem, sob uma testa livre, ainda mantém aceso o olhar visionário, embora sinta o fim se aproximar. Ali estavam meu escritor favorito e meu pai, tão iguais quanto um par de luvas, excluíndo-me do meu próprio sonho. Pois a seguir, quando comparei minha fotografia aos quinze anos com a do escritor, de 1914, aos trinta e um, recortada da revista, percebi que não tínhamos parecença alguma que fosse evidente, salvo alguns traços isolados (orelhas de abano, sobrancelhas quase retas) – a diferença de idade colaborando bastante para isso. Nossos narizes não refletiam modéstia; o dele ostentava antes uma delicada solidez, além de eixo, obstinação; o meu era mais curto, acanhado. Meus olhos eram escuros e assustados, não intensos como os dele, cuja íris tinha um tom pálido sem definição em pb. De resto, ao tirar a foto eu esgarçara a musculatura ocular para diminuir o estrabismo. Isso basta. Um adolescente usou, para a auto-sedução, a imagem de um santo masturbador. Foi só. Durante a semana a vergonha cresceu com as ramificações do logro. Eu errara adoidado e não havia como ignorar o sarcasmo da sorte nem sua prova viva, meu pai. Restou-me evitar o drama, o que aplacou o fiasco. No domingo seguinte, reuni todo o acervo referente a Franz Kafka e queimei-o. A procuradoria, a rotina sem pretensões que eu tocava se encarregaram de diluir o assunto. O episódio no entanto me fez visitar passagens estreitas da minha personalidade, tipo: ter uma vida comum – bons amigos, filho saudável e inteligente, o amor, aos restos, a serviço do casamento, o cinismo face ao lixo oferecido pela política e a certeza de que nove entre dez advogados e juízes são “mulas” em tramóias financeiras, a habilidade para lidar com os dilúvios de merda e ansiedade do mercado e da informação, a consternação com a miséria brasileira etc – não significava de modo algum que eu fosse uma pessoa normal. Diria até que sou um paranormal, num sentido peculiar, assim: dificilmente eu estive aqui. Estive foi anos a fio numa jaula ao lado, de vidro, feito um animal inquieto, precário, nu, seco, mordaz, assistindo a uma pantomima de cinema mudo com a qual contracenava não sem discrição. Fora, ao lado. Uma proeza, porque sequer me dava conta dessa separação. Tempos atrás eu pensava nesse bicho improvável e no quanto ele me custava, quando meu filho Marcelo entrou no escritório e me entregou um caderno velho que encontrara ao xeretar os guardados de Letícia. Era um dos meus, sem capa, a espiral enegrecida, e logo na primeira página eu havia transcrito esta entrada dos diários de Kafka: 2 de agosto de 1914: “A Alemanha declarou guerra à Rússia. Fui à piscina.” Desde então tenho me sentido longe, distante, muito longe. Trabalho o mínimo, jejuo, caminho pela periferia, mastigo raízes. É no entanto uma nostalgia para cima, cheia de ânimo. Hoje eu precisava terminar duas petições enroladas na procuradoria e decidir se fico ou não, sem dar na vista, com o escritório de meu pai, agora um desembargador aposentado; mas a verdade é: nunca estive tão bem quanto ao gravar de viva voz este texto no celular, presente de Letícia pelos meus 45 anos. Inacessível – isso não tem preço: vou deixar o telefone sobre este banco da rodoviária, a garrafa com a mensagem, antes de tomar um ônibus para qualquer parte ou ir embrenhar-me no cerrado. Destruí todos os documentos, talões de cheque, cartões de crédito, não por frustração ou ressentimento, mas para não viciar os novos ares. Não querer o perdão dos que vou abandonar e esquecer é para mim uma conquista incomparável. “Longe” significa “bastante outro”, um mutante. Algo a ser testado. Vamos ver.