Ruy S. Sampaio |
Jair Ferreira dos Santos
Os elogios fúnebres estão entre as peças mais convencionais
da literatura. Meu amigo Ruy Sampaio faleceu há poucos dias. E me deixou um
problema. Como escrever de modo convencional sobre um ser absolutamente
inconvencional? Àqueles com os quais conviveu, ele impressionava pelo prazer do
diverso, da ousadia, do extremo, aquilo que o inscrevia no pequeno grupo das
criaturas de exceção.
A solução quem sabe exija que eu procure em sua
personalidade o que havia de mais radical para a sua definição. Em Ruy Sampaio,
esse traço se chamava, a meu ver, inconformismo. Este sentimento esteve
presente nas decisões importantes que pautaram sua história, fundamentou sua
crença em que um mundo melhor era possível. Foi por não se conformar com as
injustiças sociais, com os abusos de poder que ele optou, tenho certeza, pela
advocacia trabalhista e pelo socialismo na ação política.
Para meu amigo Ruy Sampaio, ser desconforme significava não
só desconfiar do rebanho, mas também acreditar no valor essencial da polêmica,
pela qual defendia o rebanho. O debate parteja a luz, isto é, o conhecimento,
sem o que estamos no pior dos mundos. Aqui eu me lembro das inúmeras discussões
políticas que tivemos; era raro sua inteligência incisiva, auxiliada por um
amplo domínio da História, não prevalecer. Depois, ele achava que contestar,
questionar, mesclando vez por outra humor à seriedade, respondiam por uma
necessidade ética: não se omitir, assumir posições eram atitudes vitais para a
conquista da cidadania, individual ou coletiva, porque instigavam os demais a
deixarem sua zona de conforto conformista. Este não era um dos menores serviços
que prestava à comunidade.
Com isto Ruy Sampaio corria o risco de ser tachado como
alguém entre o incômodo e o bizarro. No seu caso, esses rótulos jamais colaram,
por uma razão muito simples: até os inimigos aplaudiam a extensão da sua
coragem, a maior de todas as virtudes, no dizer dos filósofos, porque dela
dependem todas as outras.
Não seria exagero admitir, enfim, que o inconformismo em meu
amigo Ruy era um atalho para a felicidade, especialmente por seus vínculos com
a esperança. Cujas filhas mais próximas são a alegria e a bondade. Familiares,
parentes e amigos, nos quais, agradecidamente, tanto se apoiou, sabem o quanto
ele podia ser divertido e se recusava a sofrer; também conhecem o quanto estava
disposto a preterir seus interesses em favor do outro. Eu mesmo me beneficiei
do seu apreço pela fraternidade, que não era sem critério.
Seu legado para mim e, espero, para muitos que lhe foram
próximos, será sempre algo semelhante a isto: nascemos e nos criamos na luta,
mas o homem não é o lobo do homem, é seu ombro.
Jair Ferreira dos Santos é ficcionista, poeta, ensaísta e
autor, entre outros, do livro de contos A Inexistente Arte da Decepção. Figura
na coleção Primeiros Passos com O que é Pós-moderno, trabalho que já vendeu cem
mil cópias. É autor do livro de contos Kafka na Cama e do volume de poemas A
Faca Serena, premiado pela Associação dos Críticos de Arte de São Paulo.