terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Mário Bortolotto foi vítima de um tiro parado no ar

Baleado dentro do Espaço Parlapatões, na praça Roosevelt, no último sábado, dramaturgo passou de testemunha de seu tempo a vítima da realidade factual

MAURÍCIO PARONI DE CASTRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O diretor Fernando Peixoto descreve a estrutura de "Um Grito Parado no Ar", de Gianfrancesco Guarnieri, no teatro Aliança Francesa, em 1973: "Um diretor e cinco atores procuram realizar um trabalho, enfrentando toda sorte de pressões externas; [...] noutro plano estão os poucos momentos em que o diretor e atores conseguem vencer; o espectador assiste ao processo de criação do ator. A mística do teatro é desnudada. [...] No terceiro plano estão as entrevistas com o povo, todas autênticas, gravadas nas ruas de São Paulo. Na peça dentro da peça seriam entrevistas realizadas para servirem de material de estudo para a criação de suas personagens".

Trinta e oito (38!) anos depois, na mesma cidade onde a população (rica e pobre) passou a ter a mesma vida dos ratos, dentro de carros com insulfilm, de escritórios, nas fábricas, escrava de apartamentos cuidados por uma imensa população de escravos chamados de empregados, há uma praça onde passa a vigorar uma estranha proibição de ir e vir.

São os próprios moradores -que substituíram os travestis e prostitutas de um tempo- a chamar as autoridades, obrigadas a cumprir a lei -não importa se a lei vale ali e para os 99% dos lugares periféricos onde há tiroteios e chacinas.

Um dramaturgo que tem um blog chamado "Atire no Dramaturgo", dentro de um dos teatros da praça, reage a um assalto promovido por ladrões drogados e certos da impunidade. É baleado, espera-se não mortalmente.

Não é Camus, não é Kafka, não é Buñuel, não é mais Guarnieri. O próprio dramaturgo não pode contar a condição absurda dessas circunstâncias. Porque de testemunha de seu tempo virou vítima da realidade factual. Esse é o drama: nenhum de nós consegue contar a tragédia, porque não há público que possa entender tal lógica. Quem é o promotor dela?Quem financia aquela bala?

Escola

Na praça emblemática do drama com uma bala parada no ar, vai se instalar uma escola de teatro onde se ensinará o grito. Não é uma escola qualquer; é dirigida aos que não podem estudar, aos únicos que entendem a lógica de contar histórias nas quais vivem. Gente que está fadada a viver como aquele assaltante que "atirou no dramaturgo". Mas se revolta, indignada, a classe imbecil que ideologiza a nossa cidade, os "libertários" que inventam e habitam apartamentos de muitos cômodos, banheiros e três garagens em 60 m2. Aquela gentalha aparentemente decente tão bem criticada nos filmes e escritos do cineasta Pasolini. Exigem mais escolas perto deles. Escolas inacessíveis a quem precisa de uma linguagem para poder se contar.

Italiano brasileiríssimo, o autor de "Um Grito Parado no Ar", Gianfrancesco Guarnieri, declarou que "ter de modificar a própria maneira de falar pode ser bom, no sentido em que a modificação traz a conquista de novos instrumentos".

Gianfrancesco vinha de um país que, acabado o fascismo, resolveu o problema de forma direta: escolas boas para todos, indiscriminadamente. Em duas gerações, acabou a violência. Mas aqui fingimos pensar o grande, o social e o econômico. E se continua como antes, na deseducação e no falso sonho de liberdade.

Esse tiro parado no ar de que o nosso Bortolotto infelizmente é protagonista precisa ser extraído de nossas cidades. Se tivermos, como classe, assumido a responsabilidade de artistas, indo além dos interesses ideológicos, vamos dar condições "gramáticas" de resposta a quem não tem. Isso quer dizer fazer estudar quem realmente pode puxar um gatilho.

Resposta

Se quisermos dar uma resposta civilizada e de classe a esse absurdo, esta só poderá ser histórica e de longo prazo; formar mais artistas e dramaturgos -os próprios protagonistas daquela triste madrugada, os que ensinarão, os que estudarão na praça- para contar o que não se consegue contar agora.

Não se trata do lugar-comum "a vida imita a arte", porque isso é material de literatura, de teatro, de música e de arte.Há meses venho dizendo que ali se trava uma batalha social, política e humana. Há vozes de heroísmo e de demagogia. Quem banca tal espetáculo, tal escola, e por aí vai, como fofocas numa luta de miseráveis. Isso tem de mudar. Somente reflexão, inteligência e disciplina poderão salvar tudo. E quando escrevo "tudo" escrevo "centro". Neste momento somos símbolo e centro de um drama que pode modificar o seu final.

A nós agora cabe decifrar como contar e com qual gramática podemos lutar para que as coisas melhorem. E isso é possível. Por enquanto, envio força vital ao Bortolotto.

MAURÍCIO PARONI DE CASTRO é diretor de teatro

Fonte: Folha de S. Paulo