sábado, 9 de março de 2013

Quando a guerra do Iraque chegou ao nosso condomínio

Filme Rota Irlandesa


Filme Rota Irlandesa 

O rio-pretense Luís Augusto Branco, no Iraque

Luís Augusto depois do atentado
Assisti, essa noite, o filme Rota Irlandesa (Route Irish, 2010), um thriller denuncista  sobre a guerra do Iraque do cinema engajado do britânico. O filme foi indicado a Palma de Ouro, em Cannes.
A tal rota irlandesa é o apelido da "via mais perigosa do mundo", como ficou defindo o trecho que ligava o aeroporto de Bagdá à chamada Zona Verde, a área segura que o exército dos EUA isolou ao redor do antigo palácio de Saddam Hussein.
Foi na rota irlandesa que morreu Frankie (John Bishop), alvo de uma emboscada iraquiana, para desespero de Fergus (Mark Womack), o amigo de infância que havia convencido Frankie a ganhar vida no Oriente Médio.
A ação se passa em 2007. O filme mostra a atuação de empresa de segurança privada cujos funcionários passaram ser conhecidos do público como o exército de mercenários em atividade no Iraque.
Na época, entre 100 mil e 130 mil "soldados privados", termo preferido pelas companhias que os empregam, em ação na guerra, a maioria em atividades ligadas a segurança e defesa. O total é quase o equivalente aos 145 mil soldados norte-americanos que estavam no país.

Sem regras
O filme também traz à tona outro aspecto polêmico desse contingente em ação no Iraque. Diferentemente dos soldados, que respondem ao código de conduta do Pentágono, os "privados" se encontram numa zona juridicamente cinzenta. Até 2007, eram regulados pela Ordem 17, assinada por Paul Bremer em junho de 2004, uma semana antes de deixar o comando provisório do Iraque.
Pela disposição, nunca revogada, "os privados devem ser imunes ao processo legal iraquiano em relação às ações realizadas por eles enquanto a serviço de empresas". A ordem abriu brecha para que tanto o governo iraquiano quanto os comandantes militares dos EUA se eximissem da responsabilidade sobre essas dezenas de milhares de pessoas, de várias origens e nacionalidades.

A Guerra em Rio Preto
Tudo isso me fez recordar do dia em que amanhecemos como nosso condomínio, o Green Park, em Rio Preto, cercado por emissoras de TV.
O rio-pretense Luís Augusto Branco foi vítima de um atentado suicida na Rota Irlandesa, quando fazia a escolta de políticos. Ele estava no banco de trás de um carro blindado, voltando do aeroporto de Bagdá, olhando um automóvel que passava ao lado, quando um clarão pardo tomou toda a sua vista. Um estrondo tão violento que nem barulho fez. O próprio som sumiu. A próxima coisa que sentiu foi a água e a lama de uma poça. Se deu conta de que o veículo que trafegava lentamente a seu lado na pista da direita era um carro bomba. Suas pernas estavam moídas, imersas na lama, o fêmur exposto.
De acordo com a família, que morava no Green Park, Luiz Augusto trabalha em uma empresa de segurança australiana e está no Iraque há quase um ano, onde presta serviços para uma organização não-governamental  militar.
O rio-pretense Luís Augusto Branco chegou a estudar engenharia na Escola Politécnica da USP, em São Paulo, mas desistiu do curso pouco antes de se formar. Também cursou Direito, na Faculdade do Largo São Francisco, também na Capital.
Após o curso, Luís Augusto prestou exame para a Academia de Polícia do Barro Branco, onde ingressou na carreira militar. Segundo nota à imprensa divulgada pela assessoria de comunicação da Secretaria de Segurança Pública (SSP), ele entrou na corporação em 17 de janeiro de 1994 e pediu baixa do serviço em 25 de junho de 2004.
O filme Rota Irlandesa parece falar da vida do rio-pretense Luís Augusto Branco.

Abaixo uma entrevista que Luís Augusto Branco concedeu, em 2005.

Fonte: http://fudeus.wordpress.com/2007/09/26/pe-de-guerra/

Como foi o dia em que você sofreu o atentado?
Foi em 16 de abril deste ano. A minha equipe tinha a missão de buscar passageiros que estavam chegando ao aeroporto de Bagdá. Saímos de manhã, aguardamos todos chegarem e, no intervalo entre duas e três horas da tarde, saímos do aeroporto. Eram três carros. Não tenho como me lembrar da formação deles e do tipo de carro, mas eu estava no banco de trás do segundo deles, no que foi alvo do carro bomba.O carro bomba trafegava do seu lado?
É. Não havia outros carros próximos. A gente estava passando por ele e notei que o carro se locomovia lentamente na pista da direita.

Você estava olhando pro motorista? Viu ele detonar a bomba?
Acredito que tenha sido um segundo observador, talvez alguém em um outro carro, que detonou. Porque o motorista não teve nenhuma reação, não fez nada suspeito. Quando chegamos a uns 10 metros tudo explodiu.

E como foi o instante? O que você sentiu?
Eu não ouvi a explosão. O estrondo é tão grande que houve um bloqueio do som. Simplesmente ausência total de barulho. Eu estava de óculos escuros e vi um clarão pardo, meio bege escuro. Essa cor ficou gravada na minha cabeça. Eu estava olhando para o carro e de repente me senti dentro da água. Minhas mãos estavam na lama. Levantei a cabeça e percebi que estava numa poça no meio do canteiro entre as duas pistas. Quando eu me virei para sentar percebi que as minhas pernas estavam todas bastante fraturadas. Senti a perna fora da posição, o meu fêmur tinha fratura exposta, o osso saía pra fora da calça.

Você se lembra do momento em que foi jogado para fora do carro?
O carro era blindado e ficou bastante danificado. Foi atirado uns 20 metros adiante na pista. Mas não sei de que forma eu fui jogado do carro. Não tenho idéia se ele rodou, se capotou ou o quê.

E o que você fez na hora em que se deu conta?
A primeira coisa que pensei foi que estava consciente e respirava bem. A poça era meio curta e vi minha perna saindo do outro lado. Os pés meio boiando, a perna meio solta. Aí vi que ainda conseguia mexer os pés. Percebi que as pernas estavam totalmente desalinhadas, mas ainda ligadas. Minha mão esquerda não estava respondendo muito bem. A força da explosão provocou as fraturas e também a onda de calor que me fez queimaduras no rosto e nos braços. Lembro ter ficado preocupado com a perda de sangue e com medo de perder a consciência dentro da água. Então procurei me arrastar com o cotovelo pra fora da poça. E me recostei.

E o que fez depois?
Olhei em volta e procurei minha arma. Nessas horas há o risco de ataques secundários dos insurgentes. Não achei meu fuzil, só a pistola. Então percebi que o meu pessoal, dos outros carros não atingidos, já tinha estabelecido um perímetro de segurança. Só relaxei mesmo quando chegou o exercito americano uns 20 minutos depois.

O que você pensava nesse tempo?
Eu só pensava no que estava acontecendo lá. Nesta hora a gente acaba fazendo o que estamos treinados, o “ABC”. Isto primeiro, isto depois, qual o próximo passo.

Não pensava que poderia morrer ou ficar paralítico?
É como um assalto. Tem gente que fica fria, se controla, faz pergunta para o assaltante. Tem outros que entram em pânico e tentam lutar. Na nossa atividade temos muito preparo mental, estudamos e treinamos procedimentos justamente para tirar o lado emocional na hora que acontece um acidente. São coisas que estão no subconsciente e o medo acaba ficando em segundo plano.

Como foi seu tratamento?
Passei alguns dias em Bagdá, fazendo os primeiros atendimentos no hospital militar. Fizeram um trabalho excelente. Eu estava com medo de perder as pernas, porque os cortes estavam muito profundos. Depois eu fui mandado para o Kuwait. Não senti confiança para ficar naquele hospital e logo voltei para fazer o tratamento no Brasil.

E seus pais, como ficaram sabendo?
Foi um pânico, não tem um jeito bom de dar uma noticia dessa. Minha noiva me acompanhou o tempo todo lá, ligou para meu irmão e ele disse a meus pais. Na hora eles viajaram para o Kuwait. Não consegui evitar.

Falando nos seus pais, você deu trabalho quando criança?
Não. Nunca arranjei briga. Sempre fui bom aluno… pelo menos até entrar na faculdade. Eu terminei o colegial em Rio Preto e vim pra São Paulo fazer um ano de cursinho. Quando entrei na Faculdade de Engenharia [Poli-USP] deixei de ser bom aluno e fiquei dando cabeçada. Realmente não me encontrei no que fazia.

Você estava em crise?
É, não estava contente. Até o colegial tudo foi muito tranqüilo. E de repente eu não estava feliz. E quando eu comecei a estudar essa possibilidade da polícia eu senti um entusiasmo que eu já tinha perdido na Poli. Então eu acabei me direcionando pra isso e posso falar que deu certo, porque apesar de nunca ter sido uma carreira gostosa é uma coisa que eu faço com satisfação.

Você fez quantos anos de Poli?
Eu fiquei uns quatro anos até que saí pra entrar em Direito no Largo de São Francisco [USP]. No mesmo ano, prestei Academia do Barro Branco, para virar policial, mas só entrei no ano seguinte. Foi quando larguei a São Francisco também. Eu queria ser PM mesmo, trabalhar na rua.

Por que acha que teve essa vontade?
Eu sentia vontade de estar mais próximo das pessoas quando elas precisam, aquele momento mais extremo. Eu queria poder atender a suas emergências. O risco da profissão nunca me atraiu.

Você não tinha preconceito da polícia?
Não, apesar de ter sido criado numa família em que varias pessoas fizeram USP e eram mais voltados pra esquerda. É a velha história, você ouve muito sobre um lado só que acaba tentado a descobrir o que tem do outro, né?

Por que você optou pela Rota? Tem certeza de que o risco não te atrai mesmo?[risos] Eu acho que é um pouco da mística, de uma unidade que tinha uma moral elevadíssima. Era o policiamento que eu gostaria de fazer e era uma unidade com mais tempo para treinar e fazer uma coisa mais especializada.

E a fama de truculenta da Rota?
A gente trabalhava sempre em áreas de maior índice de criminalidade e a abordagem da Rota é um pouco mais rígida. A chegada mais agressiva acaba colaborando para a segurança porque evita qualquer tipo de reação. Eu sei que abusos acontecem, mas eu nunca vi. Agíamos dentro da lei. Porque se você dá um passo para fora da tua moldura legal, não importa o que o criminoso tenha feito, a gente acaba perdendo a razão. Tem que deixar a Justiça, por mais falha que a gente possa pensar que seja, resolver.


Como era sua rotina no Timor?
O Timor não tinha nenhuma estrutura de Estado. Todas as instituições tiveram que ser preenchidas por pessoal da ONU, depois foram sendo treinados timorenses para assumir. No começo era como o policiamento de área aqui, atendíamos qualquer tipo de ocorrência. A gente trabalhava em times de mais ou menos 15 policiais. Havia 42 países envolvidos na missão. Por causa do meu background e da minha atuação, depois de um mês e pouco fui convidado pra um grupo tático que trabalhava como a Rota.

Era arriscado?
Não, não. Sempre tem um ou outro que vai gritar que a ONU não é bem vinda, que primeiro foram invadidos por Portugal, depois pela Indonésia, agora pela ONU. Então muita gente não gostava da gente, mas não era uma coisa arriscada, comparando com o que eu estava acostumado aqui em São Paulo. Era como atuar em uma favela enorme. Brigas de grupos enormes, e eles usavam machete, lanças, quase sempre armas brancas.

Você trabalhou com o Sérgio Vieira de Mello [diplomata brasileiro morto em um atentado no Iraque em agosto de 2003] no Timor?
O tempo todo que eu trabalhei no Timor ele estava lá como enviado do escritório geral, era como um governador provisório do Timor. Mas dentro da cadeia hierárquica da missão ele estava distante de mim, os contatos que a gente teve foram breves.

Qual a função da ONU para você?
A ONU acaba atuando mais ou menos como a polícia, combatendo os efeitos. Se na África tem miséria e pobreza, a ONU vai lá para levar comida. Mas não quer dizer que você resolveu o problema da fome. Hoje a ONU está especialmente enfraquecida…Há pouco tempo ela estava aquecida moralmente. Estava no Iraque por uma década, procurando armas, fiscalizando. E, de repente, o Conselho de Segurança não autoriza uma guerra que aconteceu de qualquer forma e não há nada que se possa fazer a respeito. É claro que vai ficar essa mancha. Existe uma hegemonia tão grande dos EUA mundialmente que ninguém tem cacife pra impedir.

Você acha que alguma coisa poderia ter impedido a guerra no Iraque?
Acho que só a população americana mesmo, se eles não tivessem sido manipulados tão habilmente depois do 11 de Setembro. Era um governo que estava sendo totalmente impopular, que estava falhando de todos os lados.

Voltando… como foi seu retorno do Timor Leste e sua ida para o Iraque?
A missão na ONU como policial durou um ano. Quando venceu o prazo eu já tinha a idéia de dar baixa definitiva na PM e tentar um emprego definitivo com a ONU. Aos poucos fui me desligando da polícia. Mas eu tinha descoberto que gostava era de trabalhar como policial no exterior. Foi nesse período que um amigo meu da missão no Timor Leste mandou um e-mail avisando que estava indo para o Iraque trabalhar em uma empresa de segurança. Perguntei se tinha algum trabalho para mim por lá, mandei meu currículo e depois de duas semanas estava embarcando.

E te avisaram dos riscos?
Ah, eu sabia. Estava acompanhando as notícias, mas quando comecei a atuar a situação era bem diferente. Eram os meses depois do término das principais hostilidades da guerra, um período de calmaria. Aí começaram a surgir alguns atentados, mas ainda bem espaçados.

Como era seu cotidiano no Iraque?
Trabalhei como profissional de segurança e dava assessoria de segurança para ONGs. Nosso dia a dia era dar essa assessoria, fazer resumos para os clientes a respeito da situação de segurança e dar apoio para algumas operações.

Você trabalhava mais do que no Timor?
Ah, sim. No operacional, atuava digamos umas seis a oito horas por dia, mas você acaba o dia todo pronto para responder em caso de um ataque ao complexo onde você está morando. Então é um trabalho de 24 horas por dia e sete dias por semana.

Você se sentia estressado?
Não. Você se adapta ao nível de tensão. E com a experiência você acaba aprendendo a responder a determinados estímulos. Um tiro em Bagdá, por exemplo, é algo corriqueiro. Pessoas passando de carro e dando rajadas de fuzil não é nada especial. Às vezes são pessoas comemorando alguma coisa. Casamentos em Bagdá rendiam muito tiro. Lá todo mundo tem uma AK-47.

Dizem que o Saddam, quando viu que Bagdá seria mesmo invadida, abriu os paióis para a população se servir de armas…
Pelas informações de pessoas ligadas aos militares iraquianos não só eles abriram antes da invasão como eles tiraram simplesmente armas de bases militares e puseram em paióis subterrâneos, esparramaram munições e materiais explosivos pra serem usados posteriormente pela resistência.

Te incomoda ver que um atentado no Ocidente é uma grande notícia e atentados em Bagdá, às vezes muito mais trágicos, não são?
É que acaba caindo na normalidade. Todo dia explode um carro bomba, acaba diminuindo o interesse da imprensa. E de uns tempos pra cá, com a deterioração da segurança, muitos jornalistas simplesmente saíram de lá. A própria CNN deixou alguns representantes e eles ficavam dentro do hotel. Afetou bastante a quantidade de informação que é gerada pra imprensa mundial.

Recentemente um relatório independente divulgou que, apenas no pós-guerra, os Estados Unidos mataram dez vezes mais civis iraquianos do que nos atentados terroristas. Você acha que os EUA também são terroristas?
Na verdade são, mas depende da classificação que você vai dar pro terrorismo. Não sei se dá para chamar de Estado terrorista, mas com certeza a política externa deles acaba encorajando reações terroristas. A atuação dos EUA no Iraque com certeza causou um aumento de violência naquela região e eu não acho que eles podem acreditar que tenha diminuído a ação terrorista ao redor do mundo. Os próprios terroristas estão tentando provar isso pelo menos anualmente; um atentado em Madri, um atentado em Londres.

Os insurgentes têm bom know-how para atentados?
Ah sim, Bagdá virou hoje um centro de estudos para terroristas. É difícil que forças de segurança, sejam as forças privadas ou os exércitos dos países, detectem e combatam tudo. Os ataques são baseados em técnicas de guerrilha e de terrorismo. O pessoal ataca e some. É uma guerra muito difícil de ser ganha. Eu acho que não tem como vencer isso. O que você pode tentar é sobreviver.

Você acha que esse é o único tipo de guerra possível contra uma hegemonia tão grande?
O único jeito de você combater uma força muito desigual, e isso já foi demonstrado ao longo da história, é você não mostrar resistência frontal. Eu não digo terrorismo em si, mas a guerrilha, esse tipo de ataque de surpresa, talvez seja a única forma para combater uma situação desproporcional como essa. Mas o terrorismo em si já é uma coisa diferente, que não ataca os alvos legítimos.

Como assim?
O terrorista não ataca linhas de transmissão ou alvos estratégicos. Ele ataca todo mundo, qualquer estrago que você fizer é vantagem porque está querendo implantar a desordem e o medo. Fica fora da guerra convencional, não sei nem se dá para chamar de guerra. Mas é claro que isso fará com que toda a estrutura de combate, de informação, toda a estratégia de guerra tenha de ser repensada. Porque o inimigo não existe. É como combater o tráfico, onde não há um chefão como um poder central.

Você vê justificativa pro terrorismo?
Eu acho que eles tentam se motivar em justificativas religiosas, políticas, mas eu não posso ver como legítimo moralmente atuar contra alvos civis. Por mais que a gente não concorde com a invasão americana ao Iraque, ou com a invasão dos territórios Palestinos por Israel acho que o terrorismo não se justifica.

O terror também serve aos EUA?
Exatamente. Ele mantém o medo que conferiu toda essa popularidade pro governo Bush. Enquanto o povo americano tiver medo os EUA continuam apoiando uma ação forte.

Há quem diga que um dos grandes motivos dessa guerra era justamente jogar bombas para depois reconstruir. Uma espécie de segunda invasão. Você não fez parte desse jogo?
Com certeza a estrutura na qual atuei no Iraque fazia parte. As ONGs que eu protegia não têm fins lucrativos, mas elas consomem dinheiro dos EUA e, no final, empregam companhias que têm fins lucrativos, como as próprias companhias de segurança, comunicação e construção. No final, querendo ou não, todo mundo atua no Iraque agora e boa parte da população iraquiana está trabalhando para a estrutura dos EUA.

E você não se sente mal com isso, sendo tão contra essa política americana?
Nunca me senti mal. A ONU poderia ter dito “Bom, vocês fizeram a guerra, nós falamos pra vocês não fazerem, então o problema é de vocês”. Mas houve a guerra e aí a população precisaria de ajuda. E vieram as ONGs, e as pessoas que trabalham para as organizações de ajuda humanitária que precisam de segurança. Assim, atuei financiado pelos EUA, mas sem endossar a política externa deles. Acho que estou fazendo o serviço da mesma forma que eu fiz na ONU, no esforço pela reconstrução.

As pessoas te tratavam melhor por você ser brasileiro?
Para o insurgente, estrangeiro é estrangeiro. Não existe cristão, muçulmano ou qualquer coisa. Mas o iraquiano gosta muito de brasileiro. Aquela coisa de falar de música brasileira, de pedir discos de pagode e de samba.

Para você, que foi da Rota o que é mais perigoso: Bagdá ou Capão Redondo?
É difícil responder. Atuando no policiamento você também está em evidência, da mesma forma que um estrangeiro dentro de Bagdá. Você é um alvo em uma viatura num local que não conhece e com um inimigo que não usa uniforme. Pode sair um tiro de um beco qualquer. Eu perdi um policial no meu pelotão dessa forma. Mas atuei todos esses anos em São Paulo e não aconteceu nada grave comigo e acabei atingido em Bagdá. Apesar disso, acho que não me sentia mais inseguro lá do que eu me sentia aqui.

E você ainda me diz que você não gosta de risco?
[risos] Ainda posso dizer que não é uma sensação gostosa, a recompensa não está na adrenalina.

Onde está?
Em vencer as barreiras e evoluir profissionalmente, em concluir um trabalho, em fazer policiamento preventivo bem sucedido.

Você ganhava bem em Bagdá?
Sim. Mas não posso revelar valores por obrigações contratuais. Não é aquele valor mítico que se propaga, que eu vi na TV. Falavam em algo como 20 mil dólares por mês. Não era nada disso.

Não foi por dinheiro que você foi?
Com certeza não foi por dinheiro. O que eu pensei do começo até o fim foi naquele espírito da missão. Nunca foi tão gostoso trabalhar como no Timor. No Iraque era muito mais tenso e o tipo de serviço era mais pesado e burocrático. Ficava separado da população.

Quando a bomba estourou você se arrependeu de ter ido para o Iraque?
Não, não. Tive muitos momentos difíceis, principalmente no hospital, e muitas noites sem dormir por causa de dor. É claro que eu pensava em milhões de coisas, mas nunca “eu não devia estar lá”. No final é uma loteria. Foi Deus que quis me tirar de lá. Vai ver que era a hora de eu passar um tempo em casa.

Você é religioso?
Não freqüento igreja, mas eu acredito sim em Deus. Costumo dizer que não duvido de nada mais.

Você reza?
Rezo.

Sozinho?
Sim. Gosto de ler sobre religiões, mas eu sigo o que eu aprendi como cristão. No fim das contas, o que importa é aquilo que você sente, como você se conecta a uma coisa maior.

E você lê bastante?
Sim, gosto muito de história e política externa.

E você tem algum livro que te marcou especialmente?
Eu gosto muito de O Poder do Mito, do Joseph Campbell. Tem também o dicionário de mitologia dele. Heródoto eu achei fascinante. É o pai da história. Sempre volto aos relatos dele sobre as guerras contra os persas.O que você gosta de ouvir?
Gosto de MPB, gosto muito de ópera e de alguns compositores franceses, como Francis Cabrel e Gilbert Becaud. Música andina também acho legal.

Politicamente como se define?
Eu costumava votar mais pra esquerda. Atualmente eu me considero um cético. Eu não vejo direita, esquerda. Só queria honestidade.

Você se considera um cara feliz?
Felicidade é um estado de espírito e isso oscila. Minha vida não terminou para eu fazer um balanço, mas eu sinto que está indo bem. Eu me considero realizado e satisfeito da forma que ela está se desenvolvendo.

Você se sente em paz, então?
Sim. Eu me sinto em paz.