segunda-feira, 6 de junho de 2011

A Swift é da Cultura - 5


A arte como celebração da vida
 
Ruy Sampaio


Ao longo dos últimos três anos e meio, mergulhamos no mundo das artes. Convivemos com artistas e apreciadores. Debatemos com críticos, jornalistas, agentes culturais e palpiteiros. E podemos dizer que a arte nada mais é que a celebração da vida. Por meio da música, da dança, da representação, da escrita, da criação estamos sempre falando da vida, dos conflitos e da convivência humana. Ressaltando o belo, criticando a injustiça, pulsando e muitas vezes não se conformando com o estabelecido. 

A arte tem esse poder de festejar e revolucionar. Em Rio Preto, vivemos um período rico em idéias, discussões e realizações artísticas. Se não prestarmos atenção, ele passa desapercebido. Começamos essa reflexão pelas artes cênicas. Em 2001, o espetáculo “Les Bonnes”, apresentado no Teatro Municipal Humberto Sinibaldi Neto, com Ismael Ivo, Koffi Kôko, Zya Azazi e Yoshi Oida, tentava uma nova leitura coreográfica do teatro de Jean Genet. O espetáculo procurava juntar o trabalho do grupo a um teatro que une o homem ao universo. Nesse mesmo ano, Yoshi Oida se inspirava em suas experiências espirituais do budismo zen e no trabalho de Grotowski e Peter Brook para apresentar suas “Interrogações”. Experiências compartilhadas com os artistas rio-pretenses por meio de oficina.

Ainda em 2001, as meninas do Grupo Desafio, de Rio Preto, com a peça “As Lavadeiras”, discutiam o universo nordestino, seus costumes e crenças, chamando a atenção da mídia nacional. A alemã Angie Hiesl parou o centro da cidade com a instalação performática “gente-cadeira” e os mexicanos da Cia Los Voladores de Papantla invocavam o Deus do Vento à margem da Represa Municipal. José Celso Martinez fazia sua primeira expedição nos “Sertões”, de Euclides da Cunha. O público, por sua vez, discutia filosofia e filósofos, no Não-Lugar. Shakespeare, Padre Vieira, Plínio Marcos, Brecht e Nelson Rodrigues tinham suas idéias expostas dentro de cabines de 1,20 X 2,00m. 


A arte se propagava pela cidade. No ano seguinte, Jan Fabre fazia suas provocações em Rio Preto. A dançarina da Islândia Erna Omarsdottir divida o palco com três corpos de cachorros em “My movements are alone like streetdogs”, depois de receber elogios da crítica européia presente em Avignon. “Minha única função é perpetrar o amor, outra vez, outra vez...”, dizia Els Deceukelier em “She was and she is, even”. Monólogo sobre uma noiva desesperada, amarrada firmemente em um impenetrável vestido. 2002 foi o ano dos australianos do The Fields ganharem as alturas. Seqüências oníricas num balé aéreo encantaram e trouxeram magia para todos. Os russos do Derevo apresentaram o seu conto de fadas surrealista em “Once”.

A cidade entrou em contato com a loucura de Antonin Artaud interpretada pelos atores rio-pretenses nos bairros periféricos. Na seqüência, tivemos “Cartas de Rodez”, peça baseada nas correspondências do dramaturgo com seu psiquiatra. “Hysteria” mostrava os desvios e contradições de cinco personagens num hospício carioca feminino. Bispo” explora o mundo místico de Arthur Bispo do Rosário. Obras inacabadas como “Woyzeck”, de Georg Büchner, e “O Homem e o Cão”, proposta teatral que discutia a relação do homem com o cão, de Luis Melo, vivenciaram seus processos na terra de São José. 


Enquanto isso, José Celso fazia sua segunda expedição nos “Sertões”. Em 2003, a utopia era a palavra de ordem. Os países, ditos periféricos, mostraram sua cara. A opereta apocalíptica dos argentinos de “La última noche de la humanidad” fez uma reflexão sobre a guerra, a violência e a morte. Os equatorianos de “Nuestra Señora de las Nubes’ descobrem a solidão longe de sua terra. Já os indianos de “Make-up” mostram que as estrelas cinematográficas de “Bollywood” fazem parte do imaginário da Índia atual. A trilogia da Vertigem provoca impacto. Em “O livro de Jó” um homem justo é provado em seu próprio corpo numa ampla discussão teológica. “Paraíso Perdido” abriu as portas da Basílica para o clássico poema de John Milton. O público acompanhou o anjo caído e sua viagem após a expulsão do Éden. O texto tem poemas de Jorge Luis Borges, Vicente Huidobro, Rilke e T.S. Eliot. O Cadeião se transforma em Nova Jerusalém em “Apocalipse 1.11” . João acompanha o julgamento da humanidade na virada do milênio.

A Swift é transmutada em Lugar-nenhum atraindo milhares de pessoas em busca de saber, entretenimento e arte. A antiga fábrica de óleo de algodão pulsa mais viva do que nunca. Suas formas compõem o cenário místico onde idéias não param de surgir. O mundo descobre o rio Preto e sua gente. Julho de 2004, a Swift se transforma novamente, e surge o arraial de Canudos. Antônio Conselheiro comanda os insurgentes. O povo luta pela liberdade, contra a miséria e a arrogância dos poderosos. Estudantes redescobrem o Brasil, suas origens. Em quatro dias, uma aula que se levaria anos para receber nos bancos escolares. José Celso finalmente apresenta “A Terra”, “O Homem” e “A Luta”. Uma experiência única que ficará para sempre na memória do público. “Agreste”, “A Procissão”, “As Bastianas”, “Sertões” se contrapondo à América do Norte. Os Sátyros e “O Banquete” provocando platéias e o Lume brindando a todos com a estética de “Shi-zen, 7 Cuias”. Tivemos Hamlet japonês e “Tito Andrônico” colombiano, mas julho foi mesmo do Zé. Não foi só isso.

Nossos janeiros ficaram mais divertidos com palhaços, mímicos e artistas que sabem fazer os outros rir. Do cotidiano, do ridículo, da estupidez, do amor, da paixão, do desprezo, do imponderável, do óbvio, enfim, da vida e até da morte. De uma forma ou de outra acreditamos que todos foram tocados pelas artes, pelas idéias. O morador de Rio Preto tropeçou na Cultura a todo instante. Se deparou com a estética terceiro-mundista, carnavalesca e alucinante de José Celso e seu “foder”. Com o mundo sombrio e gestos robotizados do novo teatro japonês. Com movimentos suaves do Butô. Com as técnicas precisas e a mímica dos russos. Com o gingado, sentimentalismo e desprendimento que traduzem nossa brasilidade. Com a racionalidade e frieza européia. Ruas e praças fervilharam num mosaico formado por artistas de todas as partes e tendências. Foi um grande salto. Temos certeza que estamos contribuindo para formamos um novo pensamento, arejado, liberto dos preconceitos, solidário, humano, fraterno, onde todos nos igualamos na celebração da vida.

Diário da Região - 18/8/2004